O sentido do termo vingança na Bíblia

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Tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, encontramos muitas passagens que falam de vingança como algo positivo, notadamente as passagens que se referem à vingança divina – fato que, às vezes, causa uma certa estranheza no leitor hodierno da Bíblia. Isso porque o termo vingança traz à nossa mente naturalmente a idéia de algo que não tem um valor ético louvável. Como, então, entender essa discrepância?
Como entender o fato de que, diferentemente do que aprendemos e está incutido em nossa mente, o termo vingança denota, em boa parte do texto bíblico, exatamente um valor correto? Por que, na maioria das vezes em que surge no texto sagrado, ele está carregado de um valor ético positivo e não de um sentido reprovável? Será que, no original das Sagradas Escrituras, os termos que ali aparecem para se referir à vingança, na verdade, não tratam exatamente de vingança?
A resposta é não. Por exemplo: o termo vingança aparece cerca de 70 vezes no Antigo Testamento e em todas elas o vocábulo usado no original é nãqam, que significa exatamente... vingança!
Como, então, é possível um sentido diverso?
O problema é que tem havido, nos últimos anos, principalmente depois que mergulhamos na "Era do Império do Politicamente Correto”, um mal-entendido em relação ao sentido e ao uso originais do termo vingança. A questão é que, eclipsados pela influência da onda do "politicamente correto", não percebemos que o termo vingança, em si mesmo, originalmente, não denota nenhum valor ético negativo. Sim, porque vingança, em si, nada mais é do que castigar ou punir alguém de quem recebemos uma lesão real, seja ela uma lesão em palavras ou atos. Lembremos que se não há lesão real, não há razão de ser para a vingança. Vingar é literalmente defender, indenizar, compensar, desafrontar, isto é, responder justa e proporcionalmente a uma lesão genuína. Em suma: vingar é fazer justiça. Quando um criminoso é condenado pelo seu crime, o lesado e a sociedade são vingados.
Entendido isso, vingança só se torna um mal quando é (1) fruto de um senso distorcido de justiça, (2) aplicada desproporcionalmente e (3) aplicada pelos meios e pelas pessoas erradas.
Em nossos dias, porém, o termo vingança é usado majoritariamente para designar a idéia de fazer justiça pelas próprias mãos, sem um julgamento justo e sem regras que respeitem os direitos do acusado. Ora, assim como toda a sociedade ocidental, a Bíblia condena esse tipo de coisa. Aliás, a sociedade ocidental condena esse tipo de vingança porque seu sistema jurídico foi erigido sobre os princípios judaico-cristãos.
Em síntese: o problema não está no uso do termo vingança na Bíblia, mas naquilo que aprendemos a visualizar quando ouvimos ou pensamos o termo vingança. A resistência que surge na nossa cabeça em relação ao uso desse termo se deve apenas à forma como o entendemos hoje. Quando lemos "vingança", imaginamos mero revanchismo, resposta ilegal ou desproporcional a um ataque justo ou injusto que sofremos; isto é, retribuir uma maldade com outra maldade. Mas, na maioria esmagadora das vezes em que o termo aparece na Bíblia, o sentido não é esse. Nesses casos, fala-se de vingança no seu sentido correto, primário, que é fazer justiça.
Em Apocalipse 6.10, por exemplo, vingança é vingança mesmo, a ser executada pelo Justo Juiz – Deus – como Ele promete.
Porém, por outro lado, é importante frisar duas coisas.
Em primeiro lugar, a Bíblia, de forma geral, desestimula os servos de Deus a buscarem vingança aqui na Terra. Em lugar disso, estimula os servos de Deus a exercerem o poder do perdão – e isso não só no Novo Testamento, mas no Antigo também (Lv 19.18). Isso porque o perdão exerce um poder transformador enorme tanto sobre a vida de quem é o ofendido quanto de quem é o ofensor. Sobre o ofendido, tem o poder de curar a ferida aberta; e em relação ao ofensor, tem o poder de fazer com que reflita sobre seus atos, caia em si, arrependa-se e mude seu comportamento. O amor constrange. O amor transforma. Mas, para isso, deve ser um perdão, um amor, não só em palavras, mas também em obras (Rm 12.20), o que só é possível pela ação do Espírito Santo em nossas vidas (Rm 5.5).
Por outro lado, em segundo lugar, quando Deus diz para seus filhos preferirem sofrer o dano em vez de procurar repará-lo, não está desautorizando de forma geral a reparação legal, muito menos a reparação via justiça secular em casos graves, mas querendo dizer que nunca devemos fazer justiça com as nossas próprias mãos e que devemos relevar as injustiças e maus tratamentos do cotidiano, que sofremos eventualmente no dia-a-dia. E mais: que devemos também confiar que o Senhor, que é o Justo Juiz, e que também foi ofendido por aquela ofensa ou ataque a seus filhos, irá vingar (julgar, compensar, reparar, punir, castigar) o mal feito a seus filhos.
Há também o fato, frisado nas Sagradas Escrituras, de que, independente de a punição secular ser dada ou não ao ofensor, o cristão ofendido deve sempre perdoar o ofensor e não retribuir o crime com outro crime, a maldade com outra maldade, o erro com o erro. Não retribuir o mal com o mal não quer dizer que, cometido um crime contra mim, minha família ou próximos, não devo denunciar o crime para que o criminoso seja preso e condenado pelos seus crimes. Não retribuir o mal com o mal quer dizer: “Não haja com ele da mesma forma que ele agiu com você. Não retribua maldade com maldade, injustiça com injustiça. E, apesar de tudo, não guarde mágoa ou rancor, mas perdoe e siga em frente”.

A vingança divina

Como já ressaltamos, quando a Bíblia usa o termo vingança, inclusive em relação a Deus, trata-se de vingança mesmo, porém não em sua forma equivocada, mas na forma correta: fazer justiça.
Inclusive, entendida à luz da santidade e justiça divinas, e contrabalançada com a misericórdia, a vingança de Deus é mais do que justa – é moralmente uma necessidade.
A vingança de Deus é uma atitude moralmente correta, pois Ele se vinga como paladino do Seu povo (Sl 94) e para castigar quem rompe Sua aliança (Lv 26.24,25), visando a estes um fim proveitoso (Hb 12.5 e Sl 119.71). Além do mais, Deus não é um Papai Noel, passando a mão na cabeça de todos. Por outro lado, nunca devemos olhar para a vingança de Deus deixando de lado Seu propósito de manifestar misericórdia. Enfatiza o apóstolo Paulo que devemos considerar tanto a bondade como a severidade de Deus (Rm 11.22). Como afirmou certo teólogo, “Ele é o Deus da ira a fim de que sua misericórdia faça sentido”. Deus não é um papai bonachão, mas também não é um déspota iracundo. Deus é paciente, Ele é "tardio em irar-se" (Nm 9.17; Sl 103.5; 145.8; e Jn 4.2) e longânimo (Êx 34.6).
A ira divina não é como a humana, posto que não leva Deus a ações insensatas, impulsivas ou imorais. Lembremos que o Justo Juiz é sábio e onisciente, justo e santo. Sua ira é uma manifestação de seu caráter, portanto é uma ira justa. O teólogo britânico James Packer lembra que “a ira de Deus é sempre judicial. A essência da ação de Deus na ira é dar aos homens aquilo que escolheram. Os homens é que escolhem a ira de Deus”.
Deus, o perfeito Juiz, retribui o bem com o bem e o mal com o mal. Ele estaria contrariando seu caráter de santidade e justiça caso permitisse que o pecado e a rebeldia ficassem sem castigo. “Então, por que às vezes Ele se demora em executar seu juízo?” Essa é uma outra questão. Não temos certeza de quando Ele executará, mas que o fará, sim. Além disso, o Juízo Final nada mais é que a execução final e definitiva do juízo de Deus sobre os ímpios.

A vingança por mãos humanas

Por fim, considerarei agora, mais detidamente, a vingança por mãos humanas.
Interessante que daquelas cerca de 70 vezes a qual nos referimos em que o vocábulo nãqam (vingança) aparece no Antigo Testamento, na maioria delas o homem é a causa secundária. Deus é que aparece como a origem (Ez 25.14; Js 10.13; Dt 32.35,41 e Nm 31.2-3). A Bíblia adverte que os homens não podem tomar vingança das próprias mãos (Lv 19.18; Dt 32.25). O próprio Deus (Dt 32.35) e Paulo (Rm 12.19) advertem contra termos um espírito vingador.
Por causa de versos que falam de um ódio justo contra os inimigos de Deus, tendemos a achar que o Antigo Testamento ensina que sempre se deve odiar os inimigos. Paulo, ao citar Provérbios 25.21-22 (Rm 12.20), mostra o contrário. Os antigos hebreus, como muitos cristãos hoje, aplicaram erradamente a doutrina da vingança divina, usando-a como desculpa para alimentar seu forte ressentimento. Jesus, em Mateus 5.43-45, 19.19 e Marcos 12.13, está referendando Levítico 19.18.
Quanto à instituição do vingador de sangue, durante a implementação da Lei Mosaica, era algo de natureza estritamente legal que supria uma necessidade de justiça numa sociedade tribal. O olho por olho não era para ser praticado por particulares, mas só depois de um processo judicial e com a sanção divina. As cidades de refúgio representaram um aperfeiçoamento, proporcionando justiça em casos de homicídio involuntário (Nm 35.9-28).
Ou seja, a Bíblia não condena o fazer justiça, mas apenas (1) o fazer justiça pelas próprias mãos, (2) sem ser pelas vias legais (3) e, mesmo que seja pelas vias legais, atribuindo ao culpado uma punição desproporcional. Mas, não só isso: exorta-nos a não guardarmos mágoa ou rancor, mas perdoarmos e seguirmos em frente.
(A pedido de alguns leitores, segue bibliografia que serviu de base para o conteúdo desta reflexão: Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, vários autores; O Conhecimento de Deus, James Iann Packer; Os Atributos de Deus, A.W.Pink; e o artigo A Vingança e a Bíblia, de minha autoria, publicado no jornal Mensageiro da Paz de outubro de 2001).

Luciano