O medo adâmico

22:42:00

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Introdução

O temor de Deus é o único temor que remove todos os outros. Com esta frase, Jay Adams sintetiza a verdade bíblica a respeito do medo [1]. Deus criou o homem perfeito, sem medo e sem culpa. Na criação primitiva do homem, havia completa harmonia entre espírito, alma e corpo. O homem era integral, inteiriço, sem qualquer transtorno espiritual, psíquico, emocional e fisiológico.

'Ĕlohîm criara o homem refletindo sua imagem e semelhança (Gn 1.27,28). Existia completa harmonia entre a imagem moral e natural. Todavia, essa conformidade entre a natureza moral e natural, entre espírito, alma e corpo, entre o espiritual e o somático foi interrompida pelo pecado.

Primeiro registro bíblico

O primeiro registro bíblico da palavra "medo", "temor" ou "pavor" acha-se em paralelo ao problema do mal moral, do pecado, da Queda, do pecado original. Diz a Bíblia: E chamou o Senhor Deus a Adão e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me. (Gn 3.9,10). O medo, segundo o literato de Gênesis, é produto do pecado, ou melhor, da perda da comunhão com Deus. Não há medo quando o crente está na relação certa com o Criador! Enquanto Adão mantinha-se em harmonia e comunhão com Deus, nada o atemorizava. O medo não existia antes da Queda, mas assumiu o posto da emoção humana quando o homem foi suficientemente corajoso para desobedecer o mandamento divino!

O primeiro medo

O primeiro medo não foi o de pecar, de ouvir a serpente, ou o medo da morte, mas o de ouvir a suave voz de Deus: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me. O pecado afetou tanto a comunhão com Deus, que o homem temera a voz de seu Criador. Quão diferente é o temor de Habacuque: Ouvi, Senhor, a tua palavra e temi (3.1). O temor do profeta o motiva a clamar ainda mais ao Senhor: aviva, ó Senhor, a tua obra no meio dos anos, no meio dos anos a notifica; na ira lembra-te da misericórdia. Na relação certa com Deus, o temor se torna em oração suplicante e intercessória.

Porém, rompida a comunhão com 'Ĕlohîm, o medo se torna em desespero e transferência de culpa: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi (Gn 3.12). O medo é desagregador, assim como o pecado. Faz com que o indivíduo desconfie do outro, que lhe é semelhante. Ao contrário do amor que não "suspeita mal ... [e] tudo crê" (1 Co 13.4-7), o medo desconfia das pessoas, suspeita mal até das boas ações.

O medo também impede o indivíduo de assumir suas responsabilidades e o seu papel como homem ou mulher. Adão, como cabeça de sua esposa, deveria protegê-la não apenas da tentação, mas também da responsabilidade da culpa. Pelo contrário, transferiu à mulher a responsabilidade da Queda. Nesse momento, Eva, provavelmente, sentiu-se desprotegida; seu marido, com medo das conseqüências do pecado, tenta, inutilmente transferir a culpa para ela. A tensão estava presente. A brisa suave cedera ao rubro das circunstâncias. Antes confiança, agora medo! Outrora afeto, agora desconfiança! O medo presente em todas as emoções humanas. Inutilmente transferiram a culpa à uma. Deus responsabilizou-os individualmente.

O medo adâmico o fez esquecer de suas responsabilidades e missão como chefe de família. Desesperado pela própria segurança, ninguém se preocupa com a do outro. É necessário altruísmo e alteridade para preocupar-se com o outro quando você sente o mesmo perigo. Adão esqueceu-se de sua mulher, quando se viu no mesmo perigo. O medo impede que a pessoa enfrente os seus problemas e as pessoas, pois se trata de uma auto-proteção, capaz de impedir que você se mova em direção ao outro. Já o amor é muito diferente. O amor aproxima você não apenas das pessoas, mas o faz encarar seu próprio problema e medo. Quantas mães, embora frágeis, já enfrentaram terríveis animais para livrar os seus filhos! O medo afugenta, mas o amor encoraja.

Termos Bíblicos

No Antigo Testamento. O primeiro termo para medo em Gênesis 3.10 é yārē', cujo significado é "temer", "ter medo", "ter grande temor", mas também "reverenciar". No original, a palavra é usada, segundo Vine, por volta de 330 vezes [2]. Este vocábulo, o mais comum no Antigo Testamento, é usado em cinco categorias: a) a emoção do medo; b) a previsão intelectual do mal; c) reverência ou respeito; d) comportamento íntegro ou piedade; e) adoração religiosa formal [3].

Um segundo termo em Gêneses 9.2 é chath, usado para descrever o "pavor", "medo" ou " o desmaiar de medo". Neste texto o medo é relacionado a um agente externo que causa pânico e temor. Este vocábulo é usado mais uma vez em Jó 41.33 para descrever que a coragem do leviatã, pois "foi feito para estar sem pavor" (ARC). Nada na terra se compara a coragem do leviatã, pois ao contrário dos outros animais, como ocorre em Gn 9.2, ele não teme o homem. De qualquer forma, apesar de outros vocábulos hebraicos serem usados para descrever a palavra medo, yārē' é a mais comum e transmite todo o conceito que o vocábulo possui em língua portuguesa. Um outro termo significativo é môrā' que aparece em Is 8.12 referindo-se ao medo externo: "não temais o seu temor", descrevendo um assombro externo.

Em o Novo Testamento. Nas páginas do Novo Testamento o principal termo para medo já é um velho conhecido da língua portuguesa: fobia, de phobos, "terror", "medo", "pânico", "susto"; phoberós, ou seja, "temível", "assustador". O uso do termo descreve várias reações da emoção humana, bem como diversas situações que amedrontam o homem, entre elas: o aparecimento de seres celestiais (Lc 1.12; 2.9); os eventos catastróficos futuros (Lc 21.26); o medo mais comum de todos, a morte (Hb 2.15); e até mesmo das autoridades (Rm 13.13).


NOTAS

[1] ADAMS, Jay E. O manual do conselheiro cristão. São Paulo: Editora Fiel, 1982, p. 378.

[2] VINE, W.E. (et al) Dicionário Vine. 7.ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2007, p. 301.

[3] HARRIS, R. Laird (et al). Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 655.

Esdras Costa Bentho
(RJ-Brasil)
é paraibano, casado com Ana Paula, e pai de Esdras Júnior e Philipe Bentho. É pedagogo, teólogo, escritor e redator das Lições de Jovens e Adultos da CPAD.

Luciano

Ler e Compreender: Atos necessários à Exegese

22:22:00

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A “exegese bíblica é a extração, explicação, narração ou interpretação dos textos bíblicos”. No entanto, o comentário da perícope bíblica, tradicionalmente chamado de exegese, somente é realizado pelo exegeta após a compreensão do texto em análise. Portanto, antes de explicar o texto é necessário compreendê-lo. Essa dimensão da interpretação foi captada maestricamente pelo filósofo do sentido, Paul Ricoeur, quando afirmou que “a exegese se propõe a compreender um texto a partir de sua intenção, sobre o fundamento daquilo que esse texto significa”.[1] Logo, a exegese quanto ciência da interpretação, se ocupa da compreensão e explicação do texto; isto é, do entendimento, elucidação do cuntextum, de sua trama, contextura e das conexões lógicas que existem entre as diferentes partes do texto a fim de torná-lo coerente. De acordo com James R. White, a exegese é o processo de compreender o texto da Bíblia em seu próprio contexto.[2] Isto posto, dois binômios são necessários à tarefa da exegese: compreender e explicar. O primeiro procede da investigação metódica e conscienciosa do exegeta, enquanto o segundo, do resultado derivado da análise.

Ao afirmarmos que a Exegese é a ciência da compreensão e explicação de textos, isto quer dizer que devemos acima de tudo entender que na prática existe um abismo entre “ler” e “compreender”, embora no grego neotestamentário as duas palavras estejam etimologicamente relacionadas. É possível ler um texto das Escrituras e não compreender o sentido ou a mensagem do mesmo. O eunuco de Atos 8.30-35 lia mas não compreendia. Vejamos rapidamente esse pormenor. Embora não perceptível na língua portuguesa, no grego do Novo Testamento, Filipe usa dois verbos cognatos: ginōskeis traduzido pela ARA e TEB por “compreender”, NVI por “entender”, mas por extensão “ter ou tomar conhecimento”; e, anaginōskeis , procedente da preposição ana que em composição inclui o sentido de “sobre”, e ginōskō , traduzido em diversas passagens por “saber”, “conhecer”, “vir a conhecer”, “entender”, “compreender” (Mt 13.11; Mc 4.13; Jo 8.32, 43; 14.7). O significado primário de anaginōskeis é “lendo em voz alta” e, o uso do verbo no imperfeito no versículo 28 (aneginosken), descreve uma ação inacabada, que está em curso ou duração; por essa razão, Filipe ouvi-o lendo o profeta Isaías (v.30) – não é sem razão que os gregos ainda hoje usam o termo anagnostikós como referência ao gosto pela leitura.

À semelhança da leitura orante da Bíblia, à maneira de Carlos Mesters [3], Filipe interroga o eunuco: “Compreendes o que vens lendo?” O termo que define o sentido de “compreender” participa do mesmo campo semântico do vocábulo que determina o significado de “leitura”; pressupondo que a leitura deve nos conduzir a uma compreensão do texto, e que o próprio ato de ler leva-nos ao de compreender. Compreender, portanto, é alcançar por meio da inteligência o significado daquilo que se está lendo. Quando compreendemos o que estamos lendo, percebemos as intenções de quem escreveu e entendemos aquilo que está contido no texto.

A resposta do etíope não deixa de ser menos esclarecedora. Principalmente pelo vocábulo que o historiador usa para descrever a resposta do leitor interessado. O termo grego, traduzido por “explicar” na ARA e “ensinar” na ARC, é hodēgēsei, procedente do verbo hodēgeō, que significa “guiar”, “liderar”. O texto ipsis litteris quer dizer: “Como posso entender se alguém não me guiar”. “Guiar” na compreensão do texto. “Guiar” na exata interpretação do conteúdo, tal qual traduziu a TEB: “E como poderia eu compreender, se não tenho guia?”. Nunca é demais repisar que a leitura de um texto é o primeiro passo para compreendê-lo.

Por conseguinte, a leitura exegética do texto bíblico é, inicialmente, diacrônica, pois está interessada no desenvolvimento histórico do texto, depois, sincrônica, pois situa-se no centro de origem lingüística, histórica e social a que está inserido.

Por fim, apresenta ao homem e a igreja contemporânea a mensagem das Escrituras conforme as suas interrogações e dilemas. Filipe explica o texto ao eunuco etíope e, a partir do contexto do profeta Isaías, “anunciou-lhe a Jesus” (At 8.34,35).

Exegese e a Evangelização

A explicação e narração do texto sagrado foram além do invólucro dos sinais semânticos e das sínteses culturais, que às vezes estão longe da cultura e dos problemas daquele que ouve. Essa superação interpretativa na prática da evangelização mostra-nos que uma leitura significativa das Escrituras não é apenas documental e acadêmica, mas também, e, principalmente, evangelística e pastoral.

A leitura e comp reensão das Sagradas Escrituras devem conduzir o homem a Deus,por meio de Cristo, o LOGOS ENCARNADO. Qualquer leitura crítica da Bíblia que afaste o homem de Cristo ou da fé apostólica não cumpre os propósitos pelo qual o Verbo de Deus se manifestou (Jo 1.14).

Shökel sabiamente afirma que "a Palavra de Deus não é apenas uma informação religiosa, uma informação sobre Deus; é Deus mesmo se autocomunicando, mais ainda se auto-revelando". [4] Deus revela-se por meio do Verbo Encarnado, o Logos Theou, como também mediante a Sagrada Escritura, a revelação epistemológica. Filipe, a partir das Escrituras, anunciou o nosso Senhor Jesus ao etíope (At 8.35). O propósito pelo qual interpretou a Palavra de Deus segue-se imediatamente ao fechamento da narrativa lucana: "desceram ambos à água, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou" (At 8.38). A interpretação das Escrituras nessa perícope cumpriu certos propósitos evangelísticos e poemênicos. Isto não quer dizer que a exegese e hermenêutica bíblica limitam-se à evangelização e ao pastoreado, pelo contrário, mas que a ciência bíblica de análise e interpretação do texto sagrado não deve omitir-se na tarefa de conduzir o homem a Deus, por meio de Cristo, pois a Palavra de Deus não é conceito para a mente, mas vida para o coração.

A exegese, como metodologia da ciência bíblica, deve promover, por meio da interpretação, o encontro entre o homem e Deus. No dizer de Weiller, "a dialética da distância e da proximidade" devem ser aproximadas:
O texto escrito só produz seu verdadeiro sentido como Palavra do Deus vivo no encontro e na tensão destes dois pólos históricos. Uma releitura fiel e engajada da Bíblia, a partir do Espírito que a anima (cf. Jo 14.26), faz explodir o potencial criador da Palavra de Deus, fonte geradora da verdadeira vida. [5]

Uma leitura bíblica que podemos chamar de eficaz ou científica é aquela que usa uma metodologia capaz de conduzir o leitor ao correto significado do texto. Assim sendo, tal qual Filipe, a exegese se propõe a conduzir, liderar, ou guiar o estudante das Escrituras na compreensão ou entendimento do texto bíblico. Conforme a concepção de Schnelle, a exegese é um processo de leitura, aprendizado e compreensão dirigido metodologicamente, cujo objetivo é realizar um inventário das dimensões históricas e teológicas dos textos.[6]

[1] RICOEUR, Paul. Hermenêutica y estructuralismo. Buenos Aires: Ediciones Megápolis, 1975, p.7.

[2] WHITE, J.Robert. Scripture alone: exploring the Bible’s accuracy, authorith, and authenticity. Minesota: Bethany House Publishers, 2004, p. 80.

[3] MESTERS, Carlos. Reflexões sobre a mística que deve animar a leitura orante da Bíblia, p.100-4. In ESTUDOS BÍBLICOS 32. ANTONIAZZI, A.;GRUEN, W. (orgs.). Métodos para ler a Bíblia. Petrópolis, São Leopoldo: Vozes, Editora Sinodal, 1991.

[4] SCHÖKEL, L.A.;SICRE DIAZ, J.L. Profetas. Madri: Ediciones Cristiandad, 1980, Comentário – 1, p.17.

[5] WEILLER, L. A mulher na Bíblia

[6] SCHNELLE, Udo. Introdução à exegese do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2004, Bíblica Loyola – 43, p. 178.

Esdras Costa Bentho
(RJ-Brasil)
é paraibano, casado com Ana Paula, e pai de Esdras Júnior e Philipe Bentho. É pedagogo, teólogo, escritor e redator das Lições de Jovens e Adultos da CPAD.

Luciano

Aprendendo com a Ira de Deus

22:14:00

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É interessante como pouco ou quase nada tem sido dito em nossos dias sobre a ira de Deus. Essa é, sem dúvida, uma das razões pelas quais a qualidade da vida espiritual de boa parte dos cristãos em nossos dias é baixa.
Perceba: eu disse “uma das razões”, e não “a razão”. Isso porque, como já escrevi em Como vencer a frustração espiritual, o problema do evangelicalismo hodierno é muito mais amplo. O que precisamos não é de uma onda de pregações especificamente sobre a ira de Deus ou de uma onda de mensagens sobre um outro atributo divino olvidado para que, finalmente, muitos cristãos sejam despertados e comece um avivamento. Precisamos de toda a Palavra, de “todo o conselho de Deus” (At 20.27), e não apenas de uma faceta da verdade. Agora, pregar todo o conselho de Deus inclui, obviamente, pregar integralmente sobre Deus (lembre-se que o mesmo Jonathan Edwards que pregou o célebre sermão Pecadores nas mãos de um Deus irado também ministrou várias vezes sobre a graça divina e muitos outros temas durante o Grande Despertamento norte-americano no século 18).
“Mas já não há muita prédica sobre Deus em nossos dias?” Sim, há, mas o problema é que a maioria esmagadora desses sermões gravita em torno do que Ele faz e pode fazer, e não em torno do que Ele é. Por isso, não é à toa que vemos tantos crentes reivindicando a ação divina a todo instante, porque tudo o que sabem sobre o Senhor diz respeito exclusivamente às Suas ações. Sua relação com Ele baseia-se mais no Seu poder, no que é capaz de fazer, do que na Sua pessoa e no Seu caráter. Quando perguntamos a esses crentes “Quem é Deus?”, a situação se complica. A maioria das definições tem um conteúdo vago e contraditório, e isso é extremamente preocupante.
É preocupante porque é impossível o crente ter um relacionamento perfeito com o Criador, e conseqüentemente ter uma vida espiritual sadia, sem conhecer a natureza e o caráter divinos. Já dizia A. W. Tozer: “Se pudéssemos extrair de qualquer pessoa uma resposta completa à pergunta ‘O que lhe vem à mente quando você pensa em Deus?’, poderíamos predizer com certeza o futuro espiritual dessa pessoa”. Sem um conhecimento básico sobre o que a Bíblia ensina sobre Deus, qualquer crente pode se encontrar, de repente, adorando uma caricatura de Deus pensando que está adorando o verdadeiro Deus.
Quem não conhece plenamente quem é Deus está mais suscetível para embarcar em alguma falsa representação teológica dEle e, assim, se machucar espiritualmente. Por outro lado, quem conhece a Deus pode relacionar-se com Ele de forma correta e crescer espiritualmente. A Palavra de Deus afirma: “...mas o povo que conhece o seu Deus se tornará forte e ativo” (Dn 11.32).
O tipo de vida espiritual que muitos cristãos vivem hoje é, na maioria dos casos, justamente fruto de sua visão equivocada sobre quem é Deus. Há muitas caricaturas de Deus sendo propaladas por aí, todas bastante populares, e que têm levado inúmeros cristãos à frustração espiritual e/ou a bizarrias.
Por tudo isso, senti-me impelido a escrever este artigo sobre um dos atributos de Deus pouco abordados: a ira. E por que justamente a ira? Por dois motivos.
Primeiro, porque é extremamente impopular em nossos dias falar sobre esse atributo divino. Há até quem ache que não há valor nenhum em aprender sobe a ira de Deus. “Como aprender sobre a ira divina poderá afetar positivamente a minha vida espiritual?”
Para muitos cristãos, o amor divino é mais didático do que a ira divina, quando, na verdade, tanto um como o outro devem ser considerados, se queremos crescer espiritualmente. Não é à toa que o apóstolo Paulo assevera que devemos considerar tanto a bondade quanto a severidade de Deus, e nunca uma mais do que a outra (Rm 11.22).
E em segundo lugar, resolvi escrever sobre a ira divina porque a Bíblia a enfatiza. Se você analisar nas concordâncias bíblicas qual é o atributo de Deus mais mencionado nas Sagradas Escrituras, descobrirá que há mais referências à ira divina na Bíblia do que ao Seu amor e à Sua bondade. Isso significa que a ira de Deus é um tema importante para as Escrituras e, conclui-se, deve ser também para nós, cristãos.
Dito isso, quais são, então, as lições que aprendemos quando meditamos sobre a ira divina?
1) Concientizamo-nos mais ainda sobre a aversão que devemos ter em relação ao pecado – Estamos vivendo em uma época onde o pecado chega a ser celebrado como algo que “em certa dose é bom e saudável” (vide novelas, filmes e livros que falam sobre “a alegria” e “o prazer saudável” do pecado) ou onde, na melhor das hipóteses, ele é apresentado (às vezes sutilmente) como um detalhe de nossas vidas facilmente desculpável e com o qual não devemos nos preocupar tanto. Porém, quando meditamos na ira de Deus conforme apresentada na Bíblia, logo ficamos impressionados com o ódio que Deus tem do pecado. Portanto, meditar sobre a ira de Deus nos leva a reconsiderar o pecado, passando a enxergá-lo conforme a ótica divina.
O pecado não é algo que Deus eufemiza, minimiza ou considera de pouca importância. Deus odeia o pecado, Ele ojeriza-o. Como disse certa vez o teólogo A. W. Pink, “temos a tendência de dar pouca atenção ao pecado, encobrir sua hediondez, desculpá-lo; mas, quanto mais estudamos e pensamos no horror que Deus tem pelo pecado e Sua terrível vingança sobre ele, estaremos mais aptos a compreender a infâmia do pecado” (Os atributos de Deus, A. W. Pink).
2) A ira divina nos estimula à reverência, ao temor santo – Leia Hebreus 12.28 e 29 (muitos lêem apenas o versículo 28, esquecidos de que o versículo 29 é a continuação do raciocínio do 28). É importante dizer aqui que a reverência que devemos ter em relação a Deus não deve estar baseada em mero medo. A Bíblia mostra-nos que a reverência sadia a Deus é fruto (a) do nosso amor a Ele e (b) do reconhecimento que temos de Seus sentimentos sérios em relação ao que é certo (amor e apreço) e ao que é errado (ira e ojeriza). São esses dois elementos os ingredientes da reverência ao Senhor. Volto a lembrar o que disse Paulo: devemos considerar tanto a bondade quanto a severidade de Deus, ou seja, tanto Seu amor quanto a Sua ira. Só a bondade sem a severidade nos leva a adorar um deus bonachão. Só a severidade sem a bondade nos leva a servirmos a um deus carrasco. Já a bondade com a severidade nos aponta para o Deus da Bíblia.
3) A ira divina nos leva ao grato e fervente louvor pelo sacrifício de Cristo na cruz – O peso dos nossos pecados sobre Cristo é melhor compreendido quando meditamos sobre a ira divina. Jesus levou sobre si os nossos pecados, sofreu o castigo divino por eles, foi esmagado pelo peso da ira divina por todas as nossas faltas (Is 53); e em 1 Tessalonicenses 1.10, o apóstolo Paulo ainda ressalta que Jesus nos livra da “ira vindoura”.
Em várias passagens do Novo Testamento e do livro de Salmos, Deus é louvado pela Sua misericórdia que nos livra do peso da Sua ira, da destruição, do castigo, etc. Ou seja, meditar sobre a ira divina nos leva a considerar e reconhecer mais ainda a importância da graça e do favor do Senhor. Sem Sua misericórdia, seríamos destruídos (Lm 3.22,23).
Concluindo, volto a enfatizar que há outras facetas do caráter e da natureza de Deus que igualmente não devem ser relegadas. A ira de Deus é só um dos muitos aspectos que não devem ser esquecidos - e que, quando evocado, salienta ainda mais a importância do amor de Deus. Quem entende isso pode, como o apóstolo João em Apocalipse, olhar para o poderoso e temível Leão da Tribo de Judá e ver o humilde Cordeiro assentado sobre o trono (Ap 5.5,6). Sim, porque o Cordeiro é o Leão, e o Leão é o Cordeiro.

Silas Daniel
Ministro evangélico, casado, pernambucano radicado no Rio de Janeiro, conferencista, jornalista, articulista e escritor;

Luciano