Ler e Compreender: Atos necessários à Exegese

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A “exegese bíblica é a extração, explicação, narração ou interpretação dos textos bíblicos”. No entanto, o comentário da perícope bíblica, tradicionalmente chamado de exegese, somente é realizado pelo exegeta após a compreensão do texto em análise. Portanto, antes de explicar o texto é necessário compreendê-lo. Essa dimensão da interpretação foi captada maestricamente pelo filósofo do sentido, Paul Ricoeur, quando afirmou que “a exegese se propõe a compreender um texto a partir de sua intenção, sobre o fundamento daquilo que esse texto significa”.[1] Logo, a exegese quanto ciência da interpretação, se ocupa da compreensão e explicação do texto; isto é, do entendimento, elucidação do cuntextum, de sua trama, contextura e das conexões lógicas que existem entre as diferentes partes do texto a fim de torná-lo coerente. De acordo com James R. White, a exegese é o processo de compreender o texto da Bíblia em seu próprio contexto.[2] Isto posto, dois binômios são necessários à tarefa da exegese: compreender e explicar. O primeiro procede da investigação metódica e conscienciosa do exegeta, enquanto o segundo, do resultado derivado da análise.

Ao afirmarmos que a Exegese é a ciência da compreensão e explicação de textos, isto quer dizer que devemos acima de tudo entender que na prática existe um abismo entre “ler” e “compreender”, embora no grego neotestamentário as duas palavras estejam etimologicamente relacionadas. É possível ler um texto das Escrituras e não compreender o sentido ou a mensagem do mesmo. O eunuco de Atos 8.30-35 lia mas não compreendia. Vejamos rapidamente esse pormenor. Embora não perceptível na língua portuguesa, no grego do Novo Testamento, Filipe usa dois verbos cognatos: ginōskeis traduzido pela ARA e TEB por “compreender”, NVI por “entender”, mas por extensão “ter ou tomar conhecimento”; e, anaginōskeis , procedente da preposição ana que em composição inclui o sentido de “sobre”, e ginōskō , traduzido em diversas passagens por “saber”, “conhecer”, “vir a conhecer”, “entender”, “compreender” (Mt 13.11; Mc 4.13; Jo 8.32, 43; 14.7). O significado primário de anaginōskeis é “lendo em voz alta” e, o uso do verbo no imperfeito no versículo 28 (aneginosken), descreve uma ação inacabada, que está em curso ou duração; por essa razão, Filipe ouvi-o lendo o profeta Isaías (v.30) – não é sem razão que os gregos ainda hoje usam o termo anagnostikós como referência ao gosto pela leitura.

À semelhança da leitura orante da Bíblia, à maneira de Carlos Mesters [3], Filipe interroga o eunuco: “Compreendes o que vens lendo?” O termo que define o sentido de “compreender” participa do mesmo campo semântico do vocábulo que determina o significado de “leitura”; pressupondo que a leitura deve nos conduzir a uma compreensão do texto, e que o próprio ato de ler leva-nos ao de compreender. Compreender, portanto, é alcançar por meio da inteligência o significado daquilo que se está lendo. Quando compreendemos o que estamos lendo, percebemos as intenções de quem escreveu e entendemos aquilo que está contido no texto.

A resposta do etíope não deixa de ser menos esclarecedora. Principalmente pelo vocábulo que o historiador usa para descrever a resposta do leitor interessado. O termo grego, traduzido por “explicar” na ARA e “ensinar” na ARC, é hodēgēsei, procedente do verbo hodēgeō, que significa “guiar”, “liderar”. O texto ipsis litteris quer dizer: “Como posso entender se alguém não me guiar”. “Guiar” na compreensão do texto. “Guiar” na exata interpretação do conteúdo, tal qual traduziu a TEB: “E como poderia eu compreender, se não tenho guia?”. Nunca é demais repisar que a leitura de um texto é o primeiro passo para compreendê-lo.

Por conseguinte, a leitura exegética do texto bíblico é, inicialmente, diacrônica, pois está interessada no desenvolvimento histórico do texto, depois, sincrônica, pois situa-se no centro de origem lingüística, histórica e social a que está inserido.

Por fim, apresenta ao homem e a igreja contemporânea a mensagem das Escrituras conforme as suas interrogações e dilemas. Filipe explica o texto ao eunuco etíope e, a partir do contexto do profeta Isaías, “anunciou-lhe a Jesus” (At 8.34,35).

Exegese e a Evangelização

A explicação e narração do texto sagrado foram além do invólucro dos sinais semânticos e das sínteses culturais, que às vezes estão longe da cultura e dos problemas daquele que ouve. Essa superação interpretativa na prática da evangelização mostra-nos que uma leitura significativa das Escrituras não é apenas documental e acadêmica, mas também, e, principalmente, evangelística e pastoral.

A leitura e comp reensão das Sagradas Escrituras devem conduzir o homem a Deus,por meio de Cristo, o LOGOS ENCARNADO. Qualquer leitura crítica da Bíblia que afaste o homem de Cristo ou da fé apostólica não cumpre os propósitos pelo qual o Verbo de Deus se manifestou (Jo 1.14).

Shökel sabiamente afirma que "a Palavra de Deus não é apenas uma informação religiosa, uma informação sobre Deus; é Deus mesmo se autocomunicando, mais ainda se auto-revelando". [4] Deus revela-se por meio do Verbo Encarnado, o Logos Theou, como também mediante a Sagrada Escritura, a revelação epistemológica. Filipe, a partir das Escrituras, anunciou o nosso Senhor Jesus ao etíope (At 8.35). O propósito pelo qual interpretou a Palavra de Deus segue-se imediatamente ao fechamento da narrativa lucana: "desceram ambos à água, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou" (At 8.38). A interpretação das Escrituras nessa perícope cumpriu certos propósitos evangelísticos e poemênicos. Isto não quer dizer que a exegese e hermenêutica bíblica limitam-se à evangelização e ao pastoreado, pelo contrário, mas que a ciência bíblica de análise e interpretação do texto sagrado não deve omitir-se na tarefa de conduzir o homem a Deus, por meio de Cristo, pois a Palavra de Deus não é conceito para a mente, mas vida para o coração.

A exegese, como metodologia da ciência bíblica, deve promover, por meio da interpretação, o encontro entre o homem e Deus. No dizer de Weiller, "a dialética da distância e da proximidade" devem ser aproximadas:
O texto escrito só produz seu verdadeiro sentido como Palavra do Deus vivo no encontro e na tensão destes dois pólos históricos. Uma releitura fiel e engajada da Bíblia, a partir do Espírito que a anima (cf. Jo 14.26), faz explodir o potencial criador da Palavra de Deus, fonte geradora da verdadeira vida. [5]

Uma leitura bíblica que podemos chamar de eficaz ou científica é aquela que usa uma metodologia capaz de conduzir o leitor ao correto significado do texto. Assim sendo, tal qual Filipe, a exegese se propõe a conduzir, liderar, ou guiar o estudante das Escrituras na compreensão ou entendimento do texto bíblico. Conforme a concepção de Schnelle, a exegese é um processo de leitura, aprendizado e compreensão dirigido metodologicamente, cujo objetivo é realizar um inventário das dimensões históricas e teológicas dos textos.[6]

[1] RICOEUR, Paul. Hermenêutica y estructuralismo. Buenos Aires: Ediciones Megápolis, 1975, p.7.

[2] WHITE, J.Robert. Scripture alone: exploring the Bible’s accuracy, authorith, and authenticity. Minesota: Bethany House Publishers, 2004, p. 80.

[3] MESTERS, Carlos. Reflexões sobre a mística que deve animar a leitura orante da Bíblia, p.100-4. In ESTUDOS BÍBLICOS 32. ANTONIAZZI, A.;GRUEN, W. (orgs.). Métodos para ler a Bíblia. Petrópolis, São Leopoldo: Vozes, Editora Sinodal, 1991.

[4] SCHÖKEL, L.A.;SICRE DIAZ, J.L. Profetas. Madri: Ediciones Cristiandad, 1980, Comentário – 1, p.17.

[5] WEILLER, L. A mulher na Bíblia

[6] SCHNELLE, Udo. Introdução à exegese do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2004, Bíblica Loyola – 43, p. 178.

Esdras Costa Bentho
(RJ-Brasil)
é paraibano, casado com Ana Paula, e pai de Esdras Júnior e Philipe Bentho. É pedagogo, teólogo, escritor e redator das Lições de Jovens e Adultos da CPAD.

Luciano

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